O FLUIR DA VIDA

Hoje o dia foi desafiador e por conta disso acabei entrando, ou melhor, continuando um processo reflexivo que já venho fazendo há alguns dias.

Adormeci assistindo ao filme “Eu Maior”. Lembro-me que acordei numa certa altura do filme e assisti de forma breve mais um pequeno trecho. Nesse trecho a atriz Letícia Sabatella explica como era seu processo de atuação, no qual ela buscava se 'esvaziar' para incorporar uma personagem e que, quanto mais e melhor ela conseguia se entregar a esse processo de esvaziamento, mais ela conseguia fluir e mais ela “encarnava” essa personagem, obtendo um trabalho muito melhor e maravilhoso.

Chamou-me a atenção na fala dela a questão do 'esvaziamento', colocando-se como um canal que está a serviço da vida e que deixa fluir, através dela o seu trabalho artístico e as coisas boas que a pessoa tem a oferecer. O 'esvaziar-se' também me faz lembrar de uma daquelas anedotas no qual um "Mestre explica ao seu discípulo que quando a xícara está cheia, não há espaço para mais chá, porque não cabe mais nada". Assim, para que o chá flua do bule para a xícara e da xícara para o discípulo é necessário beber (esvaziar) aquela xícara primeiro, dando lugar a outra. A anedota parece referir-se ou ser atribuída mais à questão do conhecimento, indicando que o conhecimento adquirido deve ser compartilhado. Agora, talvez uma outra forma de tentar entender esta anedota seja assim: "Tudo o que recebemos, podemos aceitar, agradecer (sentimento de gratidão) e retribuir da forma que está ao nosso alcance". 

Voltando à questão do "esvaziamento", chamou-me a atenção porque já escutei há algum tempo atrás e escutei novamente hoje numa conversa de trabalho, sobre a importância de não deixarmos “entupir” o nosso canal, porque, de alguma forma, também somos uma conexão dentro de um processo, pelo qual pode ou não fluir a vida e as trocas do dia-a-dia. Toda vez que, por algum motivo, este “encanamento” entope ou a xícara transborda, a vida é interrompida ou desperdiçada e buscará outras formas de encontrar seu caminho, assim como um rio que é represado busca vencer esse obstáculo, contornando-o ou superando-o. A ideia do fluxo de um rio me parece uma boa imagem para demonstrar a compreensão óbvia para muitos talvez, mas simples e esclarecedora que tive a esse respeito.

Me recordei também dos “surfistas”, porque no filme uma imagem muito bela que aparece é de uma grande onda se formando no mar aberto. Essa analogia do rio e do fluir, me ajuda a entender melhor, por exemplo, o comportamento de “surfistas”, “skatistas” e de praticamente todo praticante de esporte radical. Algo sempre me chamou a atenção no comportamento deles que eu não compreendia bem, mas que me parece um tanto característico e que admiro. É essa capacidade deles de simplesmente “fluir” na vida, curtindo a vida naturalmente, no ritmo que ela própria apresenta. É como se estivessem conectados à natureza e sincronizados com um ritmo próprio da vida, por isso “fluem” (deslizam) conforme as “emanações” ou ondas da vida. Esse mesmo olhar e compreensão poderíamos estender aos dançarinos, músicos, artistas em geral e todos aqueles que "fluem" na vida, muito mais por uma conexão com sua presença, seu eu interior e pela intuição e síntese do que pela intelecção, a análise e o raciocínio.

A interrupção desse fluxo definitivamente não parece interessante. Compreendi o quanto é preciso deixar a vida fluir. Às vezes, algumas características e traços de personalidade  podem  atrapalhar. Por exemplo, quando se tem um perfil planejador e controlador associado com um traço de racionalidade e atividade mental intensa, por conta do trabalho profissional ou não, naturalmente alguns espaços para o sensorial e para a intuição perdem espaço. Por vezes, somos levados a crer que todos temos ou podemos ter pleno controle sobre nossas vidas e podemos passar a concentrar grande parte dos resultados das nossas próprias vidas em nós e sob nossa responsabilidade pessoal, o que não é ao meu ver uma postura tão ruim assim. Esse parece ser o discurso que justifica o sucesso. Contudo, algumas pessoas podem passar a fazer isso de forma tão intensa que passam a querer planejar, prever e controlar quase tudo a fim de assegurar certos resultados e, por consequência, podem se fechar para as “possibilidades” e o “fluir” da vida. Além disso, é preciso deixar espaço para que uma força superior, o seu protetor espiritual (anjo, guia, mentor, amparador) uma providência divina, um Deus atue na sua vida.

Esse nosso “canal” pode ser entendido aqui como “chacras” ou centros de força (de energia) e dependendo da nossa habilidade ou fluência em fazer isso, eles podem 'enroscar' fácil. Parece importante então fazer esses chacras rodarem, em fazer a vida fluir através de nós mesmos. Mas como assim podem "enroscar" fácil? Eles podem não girar, não funcionar por diversos motivos. Pode ser porque alguns eventos existenciais ou algumas características da sua forma de ser podem favorecer, sem que você perceba (geralmente é assim, mas em se tratando de ser humano não há regras) que nos fechemos num “ego” (persona, identidade), numa casca de personalidade para nos preservarmos, para nos protegermos ou para simplesmente por medo de julgamento, exclusão, etc..ou de nos mostrarmos tal qual somos. Pode ser também que esse “fechadismo” seja um egoísmo disfarçado de queixa, de vitimização, de procrastrinação para agir, para interagir, para compartilhar. Enfim, várias são as formas com que isso se manifesta e basta entendermos suas possíveis origens. A tendência ao ‘fechadismo’, à dificuldade de perceber que às vezes, por questões de mágoa, rancor, ressentimento ou pura e simplesmente aquilo que chamo de ‘ruminação mental’, o encanamento entope e é preciso limpá-lo. Essa consciência, esse “dar-se conta de que o seu canal ou você enquanto veículo da vida está "entupido” e não fluindo como deveria ou poderia é um primeiro desafio. O outro me parece que é “limpar”. Consigo começar a compreender não só a importância, mas principalmente as consequências disto. Porque o cano entupido tem repercussões das mais variadas. Quando não aprendemos ou não deixamos fluir a nossa energia e vibrações, essa energia começa a repercutir na alma (no espírito, na consciência), a ter efeitos co-laterais diversos como a sensação de isolamento e em casos mais graves me parece que pode evoluir para a sensação de depressão, etc... É semelhante a um processo, que tem várias etapas a serem realizadas com início, meio e fim e vários envolvidos. Naquele em que o fluxo é interrompido, todos os demais envolvidos no processo, mais cedo ou mais tarde, passarão a sentir os efeitos dessa interrupção caso ela não seja solucionada, provavelmente comprometendo as relações pessoais, ainda que temporariamente.

Deixar fluir pode ser, em grande parte, um “render-se” à vida, entregar-se a uma vontade superior e deixar ela ocorrer também não só a partir daquilo que achamos que controlamos, porque de fato parece que não podemos conter esse fluxo (e precisamos?), quando no máximo talvez canalizá-lo. Uma oração, uma prece genuína que brota do coração não seria uma canalização, uma espécie de interseção a favor de alguém que amamos? Talvez por isso o voluntariado, o exercício da ajuda ao próximo, da caridade e a leveza das trocas da amizade no dia-a-dia e no convívio familiar sejam formas que ajudam a exercitarmos e mantermos o canal aberto e o fluxo constante.

Na natureza, é fácil observarmos alguns ciclos que são constantes. A troca de estações do ano e os impactos de cada estação no clima e por consequência na vegetação, etc... Da mesma forma a vida tem seus ciclos e a morte (do corpo físico) seria assim só uma transição, o início de um novo ciclo, para alguns o início da verdadeira vida. Toda vez que o ciclo da vida é impedido sistematicamente podemos chegar ao resultado de interrupção ou fechamento definitivo deste ciclo pela entropia ou capacidade de um sistema ou organismo não se regenerar ou se renovar na velocidade em que precisa. Reciclar-se e recomeçar continuamente e sempre que necessário já faz parte da vida. Manter um fluxo constante a partir do abertismo para a vida é a forma de manutenção e perpetuação da vida através de novos e constantes ciclos.

Render-se à força da vida, esvaziar-se do que você sabe e do que você acredita que é e sabe, deixar fluir de você e através de você, estar aberto à troca é sim desafiador, porque nos torna vulneráveis e implica em apresentar-se para a vida tal qual somos, sem restrições, sem imposições (incondicionalmente), mas pode ser também uma oportunidade de amadurecer, de deixar a vida florescer e quem sabe, para que nós, enquanto seres humanos, também nos tornemos seres mais plenos e mais íntegros.

Um bom entendimento a esse respeito poderia ser o de nos colocarmos à serviço da vida, sendo um canal para que a vida e seus bons acontecimentos ocorram, sendo um veículo, um catalisador, porque recebemos da vida e entregamos algo para a vida. Quando a leitura ou a percepção a respeito do que recebemos da vida não é tão agradável, a tendência é que também passemos a devolver o mesmo para a vida. Receber, acolher, agradecer (incondicionalmente) o que a vida nos entrega é uma forma de passar a melhorar o fluxo daquilo que estamos devolvendo e entregando para a vida.

Evitar a interrupção, diminuir a resistência mental, contornar obstáculos, suavizar, abrandar, permitir viver e acontecer, deixar fluir e fazer fluir, deixar seguir, deixar a vida correr por entre suas veias, acolher aqui e entregar ali adiante, abrir o coração para oferecer o melhor, sentir, intuir, movimentar-se, mobilizar a vontade e as energias, fazer  tudo isso pode requerer coragem, mas parece-me uma sábia e feliz escolha! Ceder espaço ao amor, celebrar as alegrias da vida, permitir-se ser feliz e recomeçar, tantas vezes quantas forem necessárias, entregar-se às amizades. Agora vamos praticar? Viva e deixe viver!



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